METAFISICA RELACIONAL
I. O Ser e os Seres
O que é a metafísica? A ciência do ser como ser. (...)
AS DUAS VIAS DA METAFÍSICA
1. DAS IDEIAS AOS SERES
O propósito de qualquer « físico » é compreender o que são os seres da nossa experiência, identificar, abstrair dos seus estados e condicionamentos particulares e mutáveis a sua natureza estável, a sua essência ou estrutura comum e coerente em todos os seus elementos constantes. Quanto às determinações passageiras, elas são classificadas como acidentes.
Assim vai o conhecimento científico, nos passos do conhecimento vulgar. (...) Ilustremos este passo com um exemplo inusitado: Sócrates é do género «animal», mas pela diferença « razoável », pertence à espécie « homem », e ali termina a busca da sua natureza. Esta é a definição da sua substância. O resto, que é negligenciado, é apenas acidentes. (...) Mas a verdade última de todo este saber baseia-se, muito além da coerência das nossas ideias, na existência concreta das coisas que elas pretendem definir. (...) O ser é a regra suprema de toda a ciência física, por isso é importante considerá-lo com atenção. É o papel do metafísico. (...)
Portanto, um dia, qualquer pesquisador perguntará a si mesmo o que faz as coisas, todas as coisas são! (...) Há o que não é verdade porque não existe. Há o que pode existir, mas cuja existência não é confirmada. Há o que é impossível, porque a existência não pode acontecer-lhe. O que são essas misteriosas e complexas relações que a nossa mente não controla, entre as suas ideias das coisas e a sua existência? Como se passa da ideia ao ser?
Aristóteles soube reconhecer que a existência não era uma ideia como as outras, uma determinação última que a ciência poderia atribuir às essências das coisas. Como se houvesse duas espécies de carros: carros possíveis e carros reais! Ele expressou este resultado de ideias sobre a realidade da existência concreta, dizendo que toda a ciência tem a ver com naturezas ou essências, que podem existir, mas cuja existência é como um dado exterior, superveniente, e que só lhes possa ser dada se essas essências estiverem corretas, aptas a recebê-la. (...) Em sua linguagem, essas ideias ou essências estavam então em potência de ser, e o ser seria o ato, não acrescentando a essas formas nenhuma determinação nova, nenhum acidente fortuito, mas dando-lhes simplesmente ser e isso não é nada! Foi sobre esta constatação que se construiu a metafísica aristotélica clássica, que reencontraremos em breve.
2. DOS SERES AO ATO PURO: A INTUIÇÃO DO SER
O metafísico existencialista observa, deixa-se penetrar pelo sentimento da presença dos seres, das coisas, sem parar em tudo o que são; sapato velho, banco público, raiz da árvore, não importa! A primeira abstração, a do físico, do naturalista, e a segunda, a do matemático, dão a conhecer. Para deter a sua atenção sobre o simples fato da existência, o simples fato, que rapidamente parece prodigioso, que existe, e de uma coisa para outra, que tudo existe! Enfim, superando qualquer horizonte, qualquer limite, seja o mundo, seja ele quem for, seja a existência!
Sentimentos, nem todos puramente metafísicos, agitam esta meditação primitiva. São impressões confusas, mas a este grau de intuição, metafísica, estética ou mística – a observação é de São João da Cruz –, quanto mais sublime é a visão, mais confusa é; e é melhor ter uma intuição alta e rica, mesmo confusa, que um conhecimento claro e distinto de coisas baixas. Assim a intuição da existência dá um sentimento confuso da fragilidade dos seres. (...) Outra impressão, contrastante, é a da força que tudo parece desenvolver para subsistir e exercer-se em sua plenitude. (...)
Finalmente, a partir do momento em que ele distingue, por uma profunda e total abstração íntima, de razão, mas fundada no real, a existência da essência à qual se aplica e se configura, o metafísico evoca o puro e simples Existir, O Ser puro, o Ato perfeito e sem limites, positivamente infinito e indeterminado. Então um encanto apodera-se da alma e a mantém como em admiração, em adoração diante do Ser puro, sem essência limitante, sem mais dizer dele que seu valor, sua própria força, seu ato: o Ato puro. (...)
Parece que esta apreensão do ser enquanto ser, como de um ato análogo em tudo ser, idêntico a si mesmo, sejam quais forem os modos de ser ou essências a que se aplique, cada um possa experimentá-lo, apenas na condição de estar atento. Mas muito poucos o são... Com efeito, é verdade que a multidão tão diversa das coisas desvaloriza o grande fato da sua existência comum e distrai a sua atenção. A existência parece perder o seu valor infinito a ser aplicada às miríades de essências mesquinhas, do sapato, do banco, da raiz de árvore. Então, parece relativa, efémera, sem interesse. (...)
Ao contrário, a contingência, a fragilidade das miríades de seres apenas demonstram melhor a qualidade desta existência, o vigor e o enigma deste acto de ser! Pois não impede que esse vazio de ontem e de amanhã, hoje exista! E porque é que existem este velho sapato de mendigo, este banco público e esta raiz de árvore, esta noite, que não são nada para ninguém e de ninguém? É aqui que jaz a inquietação metafísica. (...)
A INQUIETAÇÃO METAFÍSICA
A maioria dos filósofos quis considerar esta intuição angustiante da existência como destituída de qualquer sentido e interesse. Como se não houvesse noção de existência pura e simples. Como se fosse uma palavra oca, usada na linguagem corrente para distinguir de uma ideia puramente possível uma ideia que se tornou em coisa, um sapato real de um possível sapato... Príncipes miseráveis das nuvens! (...)
Tudo se liga e se conjura para fazer-nos esquecer este sol ao meio-dia: que a Existência é espantosa, e mal conveniente para dominar porque, de si mesma, faz nascer em nós, impõe a ideia de que o Acto Puro é. Que há um ser infinito, de que todas as existências conhecidas são reflexos, emanações, participações, criações, – cada um procura como dizer –, todas elas guardam alguma comunicação real e inefável, imediata e inaudita, com esta Força Primária, o seu Ato, o seu Ser. (...)
SABEDORIA METAFÍSICA RACIONAL
A CERTEZA TRANQUILIZADORA DO SER PURO
Esse pensamento espontâneo, essa intuição viva, puramente existencial, os filósofos transformaram-no em raciocínio rigoroso, mas totalmente abstrato, ou melhor, idealista, a ponto de torná-lo incompreensível e até mesmo discutível, pior: não admissível, o que é o cúmulo para a intuição fundamental da metafísica!
O ARGUMENTO ONTOLÓGICO
Para não deixar nada à dúvida, às incertezas dos espíritos hesitantes, Santo Anselmo, e Descartes, com muito mais rigor, decidiram concentrar-se primeiro numa ideia como espontaneamente formada em todo o espírito: a ideia do infinito, ou da perfeição, ou do absoluto. (...) Então, examinando os méritos e atributos desse ser da razão, essas grandes mentes concluíram que o Ser perfeito, infinito, absoluto, não podia ser concebido sem a existência que é, de todas as perfeições, evidentemente, a última! O que seria o Ser perfeito de nossos pensamentos se fôssemos negar-lhe a existência? Vá para a existência! Nós pensamos que ele existe. Verdadeiramente? Necessariamente!
Este argumento é o mais sofisticado de todos os argumentos. (...)
SUA REFUTAÇÃO ORDINÁRIA
Os físicos, homens de laboratório, nunca poderão aceitá-lo. Nenhum homem da ciência admitirá que as noções possam reinar na nossa mente sem radicar na experiência, e ainda menos que se possa passar de uma ideia, seja ela qual for, ao ser por um raciocínio da forma: é tão belo que deve ser verdade! (...)
Dizer: Esta ideia é perfeita, portanto existe, ou: Este ser perfeito, para ser perfeito, deve existir, parecerá sempre sofisticado para os filósofos. Não haveria passagem do sonho para a realidade, da ideia para o ser, da essência para a existência, a não ser que tivéssemos o poder de fazer as coisas serem pensadas e querendo-as. A existência não está na linha das perfeições da essência. O argumento ontológico parece totalmente falso, por idealismo.
REFUTAÇÃO OU JUSTIFICAÇÃO: UM ARGUMENTO EXISTENCIAL
Falso na sua forma, pode-se, no entanto, argumentar que permanece verdadeiro no seu conteúdo. Porque ele apresenta uma argumentação imparável, sob a capa de um idealismo que o faz parecer nulo. (...) Se o espírito trabalha apenas sobre as ideias das coisas, como poderíamos pensar no infinito, no perfeito, no absoluto, no Acto puro, se não dêssemos continuamente em nós mil vestígios, mil pistas, mil provas?! (...)
Este é o argumento ontológico, despojado da seu disfarce idealista. O ser está à vossa frente, erva ou formiga, ou Deus sabe o quê... O vosso olhar fixa o ser, enquanto a vossa inteligência o reveste idealmente de outras formas e atributos, cada vez mais perfeitos. Para lhe emprestar a natureza mais perfeita possível. Está a perguntar-se se tem o direito de concluir estas novas maravilhas com a sua existência? Vós esqueceis que é a existência que está diante da vossa mente desde o início, e que se revela capaz de assumir a natureza perfeita que lhe concebeis; ela exige mesmo! (...)
Portanto, não é a ideia inata de perfeição, ou infinito, que me pode levar a concluir que o ser existe. É o fato da existência, que me obriga a pensar nesta mesma existência das coisas, liberta dos seus limites, como existência perfeita, infinita, imensa, eterna. Plenária. Se procuro uma palavra que diga convenientemente este Ser puro sem o contaminar, sem o identificar com nada mais, sem o fechar em alguma definição, encontro o Nome que o Deus de Moisés deu a si mesmo, há mais de 3.000 anos, « EU SOU: EU SOU ». Se há existência, há Deus. Se um ser é, o ser puro é. Na linha de meditação da existência, eu não sou parado por nenhuma barreira e eu vou para o infinito diretamente. (...)
A existência em primeiro lugar é Deus. É natural e necessário que seja o todo de EU SOU. (...) No plano sublime da intuição metafísica, o que me surpreende não é a existência do EU SOU, é, nas miríades de seres do universo, a existência retida prisioneira de tantos constrangimentos injustificáveis e miseráveis.
O ARGUMENTO COSMOLÓGICO DE SANTO TOMÁS
OU AS CINCO PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS
Esta intuição espontânea, mas rara, que nos faz descobrir, como na transparência de todo ser, o ato puro e simples da Existência infinita, de EU SOU, os filósofos realistas, e antes de mais Santo Tomás, retomaram-na e puseram-na em forma racional, com base em dados abundantes e tranquilizadores da filosofia da natureza, isto é, no conhecimento científico dos seres do universo. (...) Mas seria errado pensar que nos afastamos muito de uma para entrar na outra, que renegamos a intuição existencial para entrar no conhecimento racional. (...)
As cinco vias de aproximação de Deus abertas por Santo Tomás de Aquino apoiam-se na intuição metafísica do ser, como a descrevemos. É ela que lhes dá todo o seu realismo e a sua constante objetividade. (...)
A primeira vantagem destas vias de aproximação é a de demonstrar ponto por ponto, explícita e irrefutavelmente, o que parece a alguns de si próprio, mas a outros permanecer incerto. A segunda é enriquecer imensamente, indefinidamente, a prova da existência de Deus, com os dados inesgotáveis das ciências naturais. (...) Em contrapartida, a força convincente da intuição metafísica, como um raio de luz dura, jorrou do próprio ser, encontra-se agora apenas enfraquecida, obscurecida através dos meandros das considerações cosmológicas. (...)
CINCO INSTANTES DO DEUS VIVO
Dos seres do nosso universo, com cinco olhares diferentes lançados sobre as suas estruturas essenciais, Santo Tomás eleva-se à afirmação da existência de Deus, primeira causa do universo. Não o faz sem propor explicações de ordem física, tiradas da nossa ciência, da nossa cultura, da nossa filosofia, que determinam necessariamente certos olhares, certas visões sobre o ser divino, ricas daquilo que afirmam, pobres daquilo que negligenciam. Para finalmente chegar a uma coleção de idéias de Deus, em vez do próprio Deus, como fotografias estáticas d'Aquele que é vida, ser puro, EU SOU.
1. Todo o movimento do universo exige uma causa proporcional. É uma ilustração marcante da intuição do ser, que passa confusamente do condicionado ao incondicionado. Isto é positivo. Mas, analisando cada movimento como a passagem da potência (e da privação) para o ato que é o seu fim, o termo, este raciocínio insinua que Deus está imóvel. (...) Nele adquire-se a certeza racional da existência de Deus, mas retira-se daí uma ideia d'Ele que reintroduz perigosamente a ordem das essências inteligíveis. (...)
2. Todo ser de natureza determinada tem uma causa proporcionada, ainda é certo. E como todas as causas dos fenômenos se entrecruzam até o infinito, existe necessariamente uma Causa primeira integral. Eis Deus encarregado dos quatro grandes papéis, de causa eficiente, de causa material, de causa formal e de causa final. Como um relojoeiro fazendo esta maravilhosa mecânica. (...)
Esta certeza tem, no entanto, uma representação singularmente redutora. (...)
3. Todo ser contingente pressupõe a existência de um primeiro ser necessário. (...)
Mas como seguimos um raciocínio abstrato e não na pura intuição do Ser, o Ser puro é declarado « necessário », sem que nenhum acaso, nenhum acidente, nenhuma aventura, nenhuma espontaneidade o perturbe. A ideia que vamos formar dele assume a forma de uma lei soberana, da Fatalidade personificada, imperturbável, inacessível. Um Deus frio e duro como mármore.
4. Os seres do universo assentam-se indubitavelmente segundo os graus de perfeição que cada pesquisador admira. Como não explicar o imperfeito pelo perfeito, ou melhor, a vasta gradação das essências por uma primeira, que recapitularia a razão e constituiria a sua forma exemplar, o modelo, a Ideia absoluta? (...)
Evidentemente, a consideração das várias formas e qualidades dos seres do universo enriquece a nossa intuição com uma ilustração abundante. Mas é um bem? Certamente, porque a existência de Deus é mil e mil vezes atestada. Em contrapartida, a sua perfeição está repleta de demasiadas figuras, símbolos e denominações que a classificam no topo das nossas hierarquias, como uma essência, sem dúvida a primeira de todas, mas do mesmo género de toda a sua série. Deus não disse de si mesmo Calor ou Brancura, disse: EU SOU.
5. A ordem e a marcha do mundo, todas as suas finalidades convergentes exigem um promotor, um governador, um pensamento criativo. (...) Está entendido. Esta quinta prova é uma última variante da intuição existencial. (...)
Mas a contrapartida aqui é muito pesada. É a Ordem que atribuímos a Deus como ao seu legislador e autor, não a desordem, o acaso, o incompreensível. Assim o fazemos, Ele, à nossa imagem, à semelhança do nosso ideal de Mestre do universo. (...) Eis Deus, guardião da ordem, e negligenciando tudo o que não convém. (...)
O VAIVÉM VEM DAS ESSÊNCIAS À EXISTÊNCIA
Para nós que tentamos edificar uma « metafísica total », depois de termos estabelecido solidamente o facto maior, a base de toda a metafísica, que é a intuição do ser, não hesitamos em reconhecer o bem fundado, a legitimidade, a segurança e a maravilhosa fecundidade da filosofia racional. Mesmo que isso signifique pontos fracos e limites. Que isso nos seja permitido!
Mas imediatamente recusamos o apelo, demasiado fácil e decepcionante, à irracionalidade dos mitos e revelações religiosas descontroladas; denunciamos esta fuga como uma escapatória. É só à meditação metafísica que é preciso pedir ainda mais revelações sobre o Ser. O escárnio dos existencialistas não passa de um mau exemplo e, no fim de contas, o justo fracasso do seu anti-intelectualismo de princípio. Isso não é razão suficiente para renunciar a construir uma metafísica existencial, paralela à outra, a essencial. Ou se quisermos, ainda procurando em nosso vocabulário, uma metafísica suprarracional, tudo aplicado apenas ao concreto, que vem como complemento da metafísica racional que se baseia na consideração das essências abstratas.
Mas a possibilidade, a verdade e a fecundidade não podem ser provadas melhor do que avançando...
EMBRIAGUEZ METAFÍSICA SUPRARRACIONAL
REALIDADE ESCANDALOSA DE SERES CONTINGENTES
Deixemos, pois, a via racional. (...) Permaneçamos na contemplação da existência, com o olhar fixo neste ser concreto, singular, aqui presente. (...) Escolha entre olhar para um objeto escandalosamente banal, um sapato velho sem par ou, espere, algum ser cuja menção por si só parece indigna de uma meditação metafísica: Misou, o gato da casa.
ESCANDALOSO ABSOLUTO
Enquanto existir, este pobre gato tem parte nesta oportunidade, neste valor, nesta perfeição que é o fato de todo ser real, concreto. Ele conta em parte na soma da existência total, do mundo, dos homens e de Deus. Há uma comunidade de existência inegável. (...) A posição existencial de Misou, a sua realidade inegável, objectiva, irredutível a qualquer ideia ou ilusão, deixa-nos estupefactos. « O que fazes aqui? » perguntei-lhe eu. Ele olha para mim, coloca a sua pata atrás da orelha com satisfação e parece responder-me, o olhar insolente: « Tu vê-lo bem, eu sou! »
É a definição de Deus! Esta existência singular e impenetrável de gato afunda-se como um canto no monólito infinito do ser divino. Ou este ser é Deus, de tal modo é incompreensível que o ser não seja Deus. Mas Misou não é um deus! Ou então ofende a Deus ao ser outro ser, fora dele, estranho a ele. Só há solução de compromisso. A saber, que um comunica o seu ser ao outro: Deus a Misou, o gato da casa... De onde lhe vem a audácia tranquila, a alegria provocante que põe na sua declaração de identidade: Eu sou.
O espírito insurge-se: se é necessário que o ser exista, se é constante que o ser existe, é escandaloso que seja esse gato. (...) Que a existência seja imperfeita, limitada, fragmentada, diversas essências misturadas com acidentes, individualidades incompreensíveis. Tal Misou, o gato da casa, que é apenas um gato sujo. Eis o escândalo total. (...)
SERES... CRIADOS POR DEUS
Como pode ele coexistir com seres, quando a razão pura da existência é o infinito? (...) Tendo estabelecido que EU SOU é pura e simples e perfeita Existência, única e infinita, como pode subsistir ao lado dele, fora dele, outros seres, Misou, você e eu? Além disso, como ser outro? Estar noutro lugar? Estar após? Quando Deus é eterno, infinito, informal? Necessariamente, deve haver dele para nós uma continuidade: o existencialismo afirmará uma causação ou comunicação da existência d'Ele, o Ser puro, a nós, seres contingentes. Mas desde que, nesta comunicação de ser, haja distinção, aparecimento de ser novo, radicalmente diferente. O que fará a novidade? A diferença? (...)
Uma única resposta permanece: falta postular a concepção de Deus, Espírito Infinito e Todo Poderoso, de certas maneiras de ser estranhas à estrutura mais fundamental do seu Ser puro. Não negativas, não ser, não positivas, puras de ser, mas diferentes. Eu sei que o que digo é incompreensível. A intuição existencial esbarra sobre estes poucos modos de ser que não são nem do ser puro nem do nada, mas uma criação de Deus: um Noutro Lugar, um Outro, que só estava no poder de Deus de inventar, de fazer estar, fora d'Ele, radicalmente vindo d'Ele e, no entanto, estranho a Ele.
Esses grandes gêneros comuns que encontramos na Natureza, formas puras criadas, nossa razão recebe-os como formas-mãe de todas as estruturas, e leis, e o entrelaçamento conhecido dos fenômenos. Esses gêneros colocados, todo o resto segue e a Física trata disso, mas compreender esses gêneros, é inútil experimentá-lo, porque Deus os pensa como outros qual Ele, o Ser puro.
E DEUS CRIOU OS CORPOS MATERIAIS
Percebemos por que razão, ao estudar no ano passado a natureza mais profunda dos seres criados segundo as ciências modernas mais elaboradas, físicas, biológicas e psicológicas, tropeçamos no incompreensível. A cada vez usamos noções que, como é evidente, respondiam a dados de experiência, a intuições primárias, mas cuja razão última escapava-nos. Tínhamos a impressão de uma coerção arbitrária, estrangeira, ininteligível, sofrida pelos seres, por causa do Ser soberano, retendo-os num certo modo de existência genérico, indefensável. Encontrado mas não explicado. Barreira, coerção, realidade que as teorias científicas modernas se esforçaram, em vão, por contestar, deformar, desfigurar, transgredir: são as noções de corpo físico, de alma viva, de pensamento racional, de consciência espiritual... (...)
Trata-se deste tipo de ser aqui, ali e não em qualquer outro lugar, volume ocupando ou constituindo um espaço, ser quantitativo, divisível, justapostos a outros, impenetrável, em três dimensões e não de outro modo. É uma natureza, uma lei, uma forma de ser original e definitiva. Injustificado, injustificável, o espaço existe pelos corpos materiais dos quais é propriedade. Natureza contrária ao Ser puro, à simplicidade da existência infinita. Não há espaço em Deus. Entre Deus e os corpos há estranheza, obviamente, não no ser, mas na maneira. Ser corpo, ser tridimensional é portanto uma criação, o efeito de uma decisão de Deus, afastando dele aquelas criaturas que dele saíram, « das suas mãos ». Quanto a tentar dizer « o que é corpo » é completamente inútil. Isto permanece, constitutivamente, ininteligível.
Esta realidade de não Deus é tão escandalosa para a mente que todos os tipos de problemas acessórios, na cosmologia, permanecem sem outra solução, senão fictícia. Assim do nada que existiria, ou melhor, que não existiria para além do nosso universo em expansão. Assim do vazio que se supõe entre os elementos descontínuos da matéria, entre núcleo e elétrons, entre átomos, entre estrelas, entre galáxias! Se não há nada, como é que há campos aqui? E se o mundo é feito de corpos que constituem volumes, e quanto ao seu limite?
De fato, ninguém pode olhar para além desta realidade física dos corpos materiais, para definir o seu gênero comum, para o pensar, para o situar na escala dos seres. Deus inventou isto como uma forma de não Deus, como outro. Ele mesmo é imaterial e afirma o seu gênio criando o "ser corpo", o ser espacial. Não é de admirar que a ciência moderna tenha ambicionado transgredir este tabu. Demonstramos a vaidade dos seus esforços para torcer o espaço, acrescentar-lhe ou retirar-lhe as dimensões naturais. O debate está neste momento em andamento; creio que está a chegar ao fim para a confusão do orgulho humano e o retorno dos físicos ao respeito pelos dados intangíveis da criação divina. EU SOU colocou os corpos nas suas três dimensões das quais nunca sairão, porque é o seu tipo de ser comum.
E DEUS CRIOU AS ALMAS VIVENTES
Assim como as coisas materiais são extensas e, por isso, divididas e justapostas no espaço, constituem o espaço, as almas viventes são como que esticadas no tempo, outro mistério! Só podem existir numa sequência irreversível de momentos, de etapas que constituem a duração. Os vivos são seres cuja realização implica o tempo, que a necessidade se prende ao tempo que passa, sem retorno. É a sua condição geral, verdadeiramente estranha, que este modo de nascer, crescer, reproduzir-se e desaparecer em forma de sequência histórica, de « finalidade » para falar como os biólogos, de destino único e inelutável que imaginamos traçado de antemão.
É a vida que confere ao tempo, quarta dimensão dos corpos em movimento, o seu significado de forma alienante do ser, de negação da imutabilidade, de distinção com a eternidade do Ato puro. (...)
Esta alma viva é como se se estendesse por todo o seu caminho ideal que vai do passado ao futuro, quer o indivíduo no seu tempo de vida, quer a espécie em milhões de vidas individuais, atravessadas por um projecto evolutivo total, ou mesmo o conjunto da vida, do primeiro ao último organismo, treinados em seu fluxo contínuo e orientado.
Ora, eis a dificuldade: do mesmo modo que os físicos se perdem sempre que se trata de explicar o que podem ser estas realidades difusas e elusivas no espaço que são os campos, gravitacionais, electromagnéticos, etc., do mesmo modo os biólogos quando se trata de explicar « informações » ou « programas » de organizações e de funções altamente complexas, dinâmicas e finalizadas. Onde é que isso existe? E quando? Dificuldade agravada, porque o momento de ontem já não existe, e amanhã ainda não. A nossa mente só alcança o ser congelado fora do tempo. Todo processo, entretanto constatado cientificamente, deixa-o diante da incompreensível realidade da alma vivente imersa na duração. A ciência moderna, mais uma vez, tentou transgredir esse tabu. (...)
A condição temporal é outra invenção de Deus Criador, é uma espécie de ser diferente, que de qualquer modo proíbe as almas temporais de acreditarem-se ou de se quererem consortes de Deus. Passam e ele permanece, fora do tempo. Ou melhor, é o tempo que está fora d'Ele, EU SOU.
E DEUS CRIOU AS ALMAS PENSANTES
A existência humana também está sujeita ao espaço e ao tempo, como ser corpóreo e como ser animal. Mas, como ser pensante, o homem poderia gabar-se de superar estes vários condicionamentos, com o pensamento aberto ao infinito, escapando do espaço e do tempo de onde começa a voar. Não será uma maior semelhança, uma maior proximidade com EU SOU, que essa inteligência capaz de compreender tudo, essa liberdade capaz de amar tudo, essa vontade capaz de tudo ambicionar ser e fazer? (...)
De fato, também aos seres humanos Deus impõe um género comum que os afasta dele no momento em que Ele lhes dá ser « à sua imagem e semelhança ». E esta forma de ser diferente, de ser outro, é a pobreza radical de um pensamento disperso nas suas ideias como os seus sentidos corporais o são no espaço, e escorregadia, incessantemente a ressaltar e reanimar nos seus raciocínios, como a sua alma o é no tempo. Espírito cuja subsistência é certa, o homem só se encontra e se ganha na presença e na comunicação dos outros seres do universo. Ele deve conhecer, amar, querer e possuir tudo o que não é ele, apenas para se conhecer, amar, querer e possuir a si mesmo. Novo paradoxo, novo tipo de ser completamente ininteligível.
Portanto, o pensamento humano (...) é como uma « tábua rasa », voltada para o exterior para receber toda a sua riqueza, e vazio como um computador, desde que não se aplique a algum novo raciocínio. (...) Mesmo que por memória conserve um acervo notável, só o reativa pelo movimento de novos discursos. (...) Alienado ao mundo, discursivo, o pensamento humano é assim radicalmente diferente do Ato puro, EU SOU. (...) Incapaz de descansar na intuição de si mesmo, como seria um pensamento que se pensa, está voltado para fora, e em movimento perpétuo, que miséria! (...)
Mais uma vez, a ciência moderna tentou violar as proibições, derrubar as fronteiras. Tratava-se de libertar o pensamento, por meta ou parapsicologia. Como se, liberta do corpo e da alma, pudesse ser um monge itinerante em liberdade, finalmente ser ele mesmo e todas as coisas, e Deus. (...) Não tenho dúvidas de que, também aqui, o fracasso se revela total e que se deve rapidamente regressar à humilde confissão da mediocridade da nossa condição. (...)
E DEUS CRIOU ESPÍRITOS ANGÉLICOS
Existe um modo último de ser, superior ao nosso, aquele que a fé cristã reconhece nos anjos e que Santo Tomás ousa dizer que é totalmente imaterial? A metafísica só teria que decidir isso se os anjos fossem objetos de experiência natural, comum e ordinária. No entanto, sem decidir a questão de fato, ela pode dizer por que razão puros espíritos podem ainda ser diferentes de EU SOU.
Com efeito, no nosso conhecimento da natureza espiritual, tão elevada que a concebíamos por analogia com a nossa, existe uma enfermidade congênita da qual não se imagina que os espíritos criados possam estar isentos. É o desdobramento de si mesmo, como sujeito e objeto de conhecimento, de amor, de vontade e de ação. Esta última enfermidade, nos seres mais perfeitos, e que impede a mais pura espontaneidade do ato, é o retorno sobre si mesmo, é a consciência de si mesmo. Todo anjo que se olha, ainda divide e opõe dentro de si a liberdade de ser, a existência que é ação à essência que é estado. Estranha, ininteligível divisão no interior do estado sublime dos espíritos puros, que mantém um abismo entre eles e o Ato puro, entre a criatura e o Criador.
Porque o Ser divino é sem desdobramento de sujeito e de objeto, não é um « Pensamento que se pensa », nem um « Amor de si mesmo », nem a « Causa de si mesmo »... Até nos sentiríamos tentados até de afastar d'Ele estas palavras de espírito, de pensamento, de consciência, de amor, todas as noções que o encerrariam em qualquer limite. Seríamos levados a excluir dele qualquer exclusão. Porque EU SOU é SANTO. Não está manchado por nenhuma das estranhezas que vemos em todos os níveis da criação. É Acto puro, Existência infinitamente simples, espontânea, necessária, perfeita.
QUAL A RELAÇÃO DO CRIADOR COM A SUA CRIATURA?
Agora a questão metafísica mais premente, a mais alta, a mais bela, está presente nas nossas mentes. Estes humildes seres concretos, agora que sabemos que não são provenientes de nada mais, desejados por ninguém mais, nem emanados de ideias divinas, nem formados por nenhum ser intermediário que explicariam e justificariam, em subordem, a sua existência, o que são, então, para Deus? O que quer deles? Qual é a sua razão divina? Qual é o futuro deles? Que eternidade é agora a deles, qual é o absoluto?
Nós vamos aprender isso nos capítulos seguintes.
Abbé Georges de Nantes
Extratos da CRC n.º° 171, novembro de 1981, p. 5-14