METAFISICA RELACIONAL
II. Ser e Criação
EU não me arrependo de ter dito que a intuição do ser, na presença de qualquer objeto, desde que se afaste do seu olhar espiritual todos os seus modos de ser e se apegue apenas à sua existência, dá acesso imediato ao Ser como pura realidade, necessário, simples, infinito. (...)
O espírito dirige-se então para este Ser puro, este Ser absolutamente necessário, evidentemente infinito, adora-o e chama-o Deus. É « EU SOU ». Não há nada mais natural, límpido, rápido, do que esta elevação metafísica. E é por isso que São Paulo diz dos idólatras que eles são « imperdoáveis » (Rm 1, 20). (...)
O que, pelo contrário, é laborioso, confuso, semeado de ciladas, é o regresso aos seres visíveis, tangíveis. Quando temos que confessar que o gato, o sapato, tal homem, tal mulher existe verdadeiramente e ainda assim não são deuses, nem Deus! (...) Ora, estes seres da nossa experiência protestam, como outrora em Santo Agostinho e Santa Mónica na sua visão da Hóstia: « Nós não somos Aquele que tu procuras! » Não são Deus, nem se confundem uns com os outros. (...)
O meu leitor pode sentir-se já verdadeiro filósofo se sentir o sentimento forte e espontâneo da certeza da existência divina, da divina existência e, ao contrário, a impressão do « espantoso paradoxo » de qualquer outro ser. (...) É Misou o meu gato que vejo, mas é o Ser divino que se revela, que se demonstra nele sem contudo se mostrar. (...) Assim, todos os seres que vejo parecem-me « imersos na relatividade ». (...)
« Pergunta inevitável », como é possível que haja um Ser e Seres, o Infinito e pó ao seu lado? Como manter juntos Este e estes sem que um tome todo o lugar e elimine o outro? (...) O Padre de Finance assinala as duas escolhas entre os quais devemos avançar: « Avivar a causa primeira ou deificar o finito? » É exatamente isso que estou a dizer.
A METAFÍSICA NATURAL DA BÍBLIA
Para os judeus dos tempos bíblicos, para os cristãos e cada vez mais intensamente à medida que se desenvolveu o seu pensamento teológico, a afirmação do Ser divino, vivo e pessoal, YAVÉ do Antigo Testamento, EGO EIMI de JESUS em São João, EU SOU, permanece absolutamente primordial, capital. Os seres do universo não são diminuídos, apagados. Pelo contrário, eles são reconhecidos em toda a sua realidade plena, a sua verdade como criações de Deus. Podemos dizer que o judeu do Antigo Testamento e o cristão do Evangelho são, de nascimento, grandes metafísicos. A intuição da existência, princípio e fundamento de uma metafísica total, é-lhes dada a crer, desde o início, como verdade revelada, e a saborear, a contemplar à luz da sua vocação primária e da sua bem-aventurança última. Deus é santo, eterno e todo-poderoso. Tudo é criado por ele, vindo dele, e tudo aspira a restituí-lo pela bem-aventurança e pela glória que são os fins da criação. Amém! O existencialismo é a filosofia natural do cristão.
O DILEMA DA FILOSOFIA CRISTÃ NO SÉCULO XII
Nascida da Bíblia, alimentada pela fé, esta filosofia, no entanto, evadir-se-ia rapidamente para a inconsistência, se não fosse fortemente retida pela razão. (...)
Ao considerar sempre as coisas como efeitos do bom prazer de Deus, o misticismo cristão imagina muito oportunamente como o Criador concebe, conhece, deseja e conduz cada ser, na sua singularidade absoluta e em todos os imprevistos da sua aventura. Muito bem! Esta é a divina solicitude. Mas tal maleabilidade de simples criaturas na mão do Todo-Poderoso poderia levar a considerar tudo como um milagre. Então, a criatura corre o risco de desmaio perpétuo, em estado de docilidade permanente e total, em « potência obediencial » a qualquer modificação ou transmutação desejada por Deus. A causalidade divina, toda a arbitrariedade, supera, apaga as causas, as naturezas, a ponto de as substituir totalmente em muitos espíritos. Chegamos assim ao ocasionalismo de Malebranche ou de Berkeley, e por que não aos avatares fantásticos das divagações hinduístas?
Era esse o perigo que corria a filosofia cristã no século XII. Sob o impulso de um misticismo bíblico, aliás, admirável, a consistência própria da natureza, das essências dos seres, parecia desmoronar-se totalmente. (...) Então o maravilhoso transborda e a ciência estagna ou recua.
A filosofia, suspeita de demasiada independência, subtraindo a ordem natural e a razão ao bom prazer de Deus, é relutante e constitui-se à parte, em sistema puramente dialético ou abstrato. O confronto entre Abelardo e São Bernardo ilustra esta crise que, coisa notável, se tornou em vantagem do místico sobre o dialético. Mas a chegada maciça da filosofia de Aristóteles ao Ocidente pela Espanha muçulmana, inverterá as relações de força cem anos mais tarde. (...)
Foi a glória de Santo Tomás de Aquino, e o serviço definitivo que prestou ao pensamento humano, de ter conciliado, não como se disse demasiado, a fé com a razão, a teologia agostiniana ou a mística bíblica com a filosofia grega, mas a física de Aristóteles, que é a filosofia fundamental das ciências, com a metafísica existencialista, criacionista há muito familiar à tradição cristã. Por isso, teve de ser muito ousado. (...)
Um maravilhoso, mas árduo pequeno livro resume o seu sistema, é o De ente et essentia, que ele redigiu num golpe para os seus jovens alunos e irmãos, dominicanos, em 1256 em Paris. Ele próprio tinha trinta anos. (...) É simplesmente prodigioso. Vamos seguir neste livrinho todo este pensamento medieval, para apreender o aristotelismo fundante, e julgá-lo pelo seu verdadeiro valor, a contribuição nova, especificamente tomista, e julgá-lo também – que o Mestre pagão e o Doutor comum nos perdoem a nossa temeridade! – para captar as estranhas falhas do seu sistema comum, às quais a nossa metafísica total se propõe pôr termo hoje. (...)
I. ARISTÓTELES DIZ: A ESSÊNCIA, SÓ A ESSÊNCIA!
Santo Tomás recapitula todo o acervo da Física aristotélica, no capítulo IV, explicando o mundo inteligível pela distinção decisiva dos três estados das essências, ou formas, ou naturezas dos seres.
Em primeiro lugar, qualquer forma ou natureza, « segundo a sua razão própria, deve ser concebida em absoluto ». Reveste-se de uma espécie de soberania sobre todos os estados concretos em que se realiza, de tal forma que se empenha perpetuamente sem por ela ser intimamente afetada. É a Natureza humana, por exemplo, que não é exatamente cada homem, nem todos os homens comuns, mas... sua causa anterior... Ela existe, e com tal força que dá ser às substâncias singulares nas quais se materializa e se concretiza. (...)
Em seguida, essa mesma natureza existe em qualquer indivíduo da espécie considerada, onde ela se realiza, de maneira imperfeita, devido à sua imbricação numa porção de matéria rebelde à sua influência; de onde resultam as características individuais, ou acidentes devidos ao acaso das coisas. Por fim, esta natureza existe num terceiro modo, no espírito que aprende a descobri-la e a defini-la pela observação dos seres em que se realiza. Tem o status das idéias universais e necessárias, produtos da inteligência abstrativa. Ela não é senão o reflexo da natureza absoluta, reconstruída pelo espírito a partir das suas realizações materiais concretas. Tudo isto é bem conhecido. (...) Note-se que « o Ato puro não constitui, para o Estagirita, a realidade suprema, é apenas o primeiro termo da série das formas; o verdadeiro Deus é antes esta mesma série, o sistema total das essências... (...)
ARISTÓTELES, PENSADOR MODERNO
Não há nada mais moderno, porque não há nada mais científico do que esta concepção aristotélica da Natureza universal e das naturezas particulares, ou essências absolutas. (...)
Existem, portanto, formas ou espécies, que são forças absolutas e universais, as verdadeiras fontes ocultas da natureza. Os seres concretos são as suas materializações ou encarnações fugazes, sem outro interesse na ciência senão observar as infinitas possibilidades destas naturezas imortais. Entre estas e as suas realizações individuais, há a passagem do virtual ao atual, do possível ao real segundo Aristóteles... Naturalmente, tudo isso, muito satisfatório, flutua em muitos mistérios: esta matéria esperando formas, que é? De onde vem? E mesmo que exista para sempre, por que razão existe? E essas formas absolutas, onde estão antes de se atualizarem em novos temas e se individualizarem neles? Qual é a sua existência virtual, possível, fora da existência real que encontram na sua materialização? (...)
II. SANTO TOMÁS DIZ: A TODA ESSÊNCIA
É NECESSÁRIA UMA EXISTÊNCIA
No capítulo V do De ente et essentia, Santo Tomás aborda o estudo das « substâncias separadas »... ou seja, as « almas » separadas do seu corpo, as « inteligências » a que chamamos Anjos, e « a Causa primeira » que é Deus. (...)
Isso, para um aristotélico, é uma grandiosíssima dificuldade. Se não há, no caso das substâncias espirituais, nenhuma corporeidade, não se vê de onde poderia vir a sua individualidade, as suas características próprias, e portanto como se poderia distinguir o seu ser possível do seu ser real! Donde pode vir a sua individualidade e a sua plena realidade àqueles espíritos puros? (...)
Para estas substâncias espirituais, que evento? Que intervenção exterior? Que contribuição? Que causa poderia marcar fisicamente, racionalmente sua passagem ao concreto individual? Santo Tomás declara que nada mais pode acontecer a estas perfeitas essências espirituais do que... a existência. (...)
A partir do momento em que a proposta é afirmada, é segura e certa e as consequências, todas elas consideráveis, dissipam-se. (…) Sobretudo, se a existência é diferente da essência, se dela é distinta, é preciso que venha de outro lado, que lhe seja dada, e por quem? (...) por este Ser que é a Existência infinita e perfeita, Causa de todas as existências finitas e contingentes, Deus
Por isso, deixemos de falar dos anjos sozinhos. Trata-se de todo o ser do universo, de toda a natureza da qual constatamos a existência e que não a dá a si mesma. Como é claro! Como é evidente! Todos esses seres recebem a existência e a recebem de Deus. Eles são criaturas. Isto é o que ganhamos por nos instalarmos no coração da Física de Aristóteles, no coração da ciência positiva: O grande princípio da distinção real, isto é, no real e não apenas no nosso espírito, da essência e da existência, e a noção fundamental de criação são introduzidos no sistema deste pagão, não por misticismo religioso ou por argumento de autoridade, mas por demonstração rigorosa. (...)
Imediatamente, em vez da autonomia, da suficiência das substâncias, mesmo espirituais, que as faziam como pequenos deuses, ou elementos independentes de uma « Natureza universal », espécie de divindade protegida, eis-as dependentes, dóceis, às ordens de Deus. (...) Assim, as essências são, na realidade, inacabadas, incompletas, inconsistentes, enquanto não tiverem recebido de outro a existência. A sua expectativa é dupla: à espera do seu ser, à espera do dom de Deus. (...) Toda essência precisa, para ser concreta e individualmente, de receber a existência. (...)
É A EXISTÊNCIA QUE COMPLETA E MEDE A PERFEIÇÃO DOS SERES
Por fim, o capítulo VI expõe, numa gradação luminosa, toda a hierarquia dos seres, Deus no topo, depois os anjos, as almas e os seres corporais animados ou inanimados. Ao explorar a sua descoberta, e ao combiná-la com o hilemorfismo aristotélico – esta composição de matéria e de forma que explica os seres corporais – Santo Tomás mostra, com cada vez mais ardor secreto, como todas as essências conhecidas pelas ciências recebem de Deus a sua existência, e por ela a sua exacta medida, a sua verdadeira individualidade, a sua plenitude.
Como a nossa primeira intuição nos fez descobrir, Deus é o único ser que não tem dificuldade. Poder-se-ia, portanto, dizer que ele não tem, em si mesmo, essência, natureza, forma de ser determinada. EU SOU é a existência sem limites, sem condições, sem imperfeições. Ele não tem nada a esperar ou a receber de outro. É aliás único, Ato puro e perfeito. (...).
O importante deste capítulo VI é também observar com que tipo de lírismo sóbrio, e com que audácia Santo Tomás liberta-se, de grau em grau, do jugo aristotélico, pelo menos tanto quanto lhe parece razoável, para mostrar nos anjos, nas almas humanas, enquanto se aguarda o seguimento, « diferenças próprias », caracteres individuantes, ou mesmo « fins », que não vêm da Natureza, mas do gesto criador, muito simplesmente e imediatamente: do dom divino! (...)
É verdade para todos os corpos, que « a sua natureza é recebida numa matéria precisa ». Mas antes disso, mais profundamente, envolvendo esta composição física de matéria e de forma, há estes seres que são, « também eles, substâncias cuja existência é recebida e limitada, porque também elas têm a sua existência de outro », que é Deus. O que quer dizer, senão que Deus lhes dá por criação, com a existência, o seu limite e a sua individualidade, ao mesmo tempo que a matéria os impõe do seu lado à sua forma. Assim, « estas substâncias compostas são determinadas por cima e por baixo ». Conciliação admirável do substancialismo aristotélico e do novo criacionismo! (...)
Assim todo o De ente e essentia, aparentemente ocupado com as essências universais e absolutas, que os físicos conhecem, leva finalmente ao reconhecimento primordial do dom divino da existência a todos os seres do universo, segundo a pura gratuidade, em número e traços singulares, da sabedoria e da bondade do Criador. (...)
O gênio filosófico de Santo Tomás detém nestas duas grandes audácias que recordamos, uma de conservação e outra de inovação.
A primeira foi tomar como fundamento de toda a Física de Aristóteles e o seu substancialismo de princípio, inabalável realismo, garantia das ciências e respeito pela razão. Por fim, todas as ciências de todos os tempos, e até ao nosso, materialista e reducionista como desejar, derivam dos Princípios da Natureza enunciados por Aristóteles ou regressam à força. Isto fez Santo Tomás contra todos os agostinianos do seu tempo, homens religiosos, homens de tradição mais do que de razão, ele fez bem.
Ele fez melhor que isso. A sua outra audácia foi lançar, e impor em pleno peripatismo pagão reviviscente, em nome dos princípios de Aristóteles mais universalmente reconhecidos, a sua demonstração revolucionária da composição metafísica dos seres concretos em essência e existência, distinção real, absolutamente universal, da mesma ordem e da mesma perfeição dos atos e da potência, da matéria e da forma que, por si só, fizeram a glória de Aristóteles.
Não só isso, mas, no mesmo movimento da sua demonstração, o seu gênio foi, mais ainda, voltar à origem primária, objetiva, destes seres compostos: a ação de Deus, a causalidade criadora. É Deus que, dando a existência às essências ou naturezas consistentes, coerentes, a tudo aquilo que chama ao ser, faz com que o mundo seja mundo e não caos nem ilusão.
Esta doutrina monumental é definitiva. Ai de quem a abalar! Reconcilia o essencialismo de uns e o existencialismo de outros num conjunto racional à imagem e semelhança da visão bíblica, cristã, da criação.
Dito isto, não é proibido melhorar o sistema... Porque, dizia Bayle, penso eu, um anão no ombro de um gigante supera-o em um côvado. (...)
III. NÓS DIZEMOS: A RELAÇÃO CRIATIVA É PRIMEIRA
Agora sabemos que a nossa intuição da existência não estava errada. Há um Ser puro, um Ato, sem limites, sem fim, Existência única e perfeita, EU SOU, no qual se banha naturalmente e repousa nosso espírito. E há miríades de existência no mundo, ao longo dos milénios, que derivam dele, Deus, tudo o que elas são, o seu ato estreitamente limitado e a sua potência, as suas expectativas sem contornos e sem número; a sua substância estável e inteligível, como também os seus indescritíveis e vãos acidentes, detalhes, peculiaridades; a sua natureza programada e sua ação, seu desenvolvimento, todo o seu destino. Enfim, sua essência e sua existência. Tudo nasce de sua Bondade criadora.
AS DUAS FRAQUEZAS DO SISTEMA TOMISTA
Então, admiramo-nos de duas coisas, na filosofia tradicional vinda de Aristóteles e de Santo Tomás:
1. A primazia da substância sobre a relação criativa.
2. E, por conseguinte, a inutilidade das existências concretas individuais, cuja relação com Deus é estéril.
São, como sabemos, duas rotinas, dois hábitos legados do passado mais distante. Mas parece que chegou a hora de liberar a metafísica para torná-la mais existencial, ao mesmo tempo que mais cristã. Total.
Vamos agora à confissão de Santo Tomás. Este santo, que era a própria honestidade, gostava de assinalar, sem alarido, as imperfeições do seu próprio sistema herdado de Aristóteles. É ao De Potentia que encontro a confissão que procuro, na verdade num cantinho minúsculo, a resposta à terceira objeção do artigo 3 da terceira pergunta desta coletânea de Questões Disputadas. Os especialistas vão encontrá-lo; contentemo-nos aqui com o resumo de Krempel na sua monumental Doutrina da relação em Santo Tomás de Aquino (Vrin, 1952):
« A relação de criação, entendida como acidente e dependente da substância, parece fazer com que esta substância exista antes de ser criada. » De fato, é exactamente isso, e é deslumbrante. No entanto, Krempel prossegue com perfeita serenidade: « Cronologicamente (!), todos concordarão que o acidente relativo em questão não deve preceder nem seguir a substância, quanto mais não seja por um momento. Do ponto de vista da natureza, o Aquinate distingue. Como um acidente, ele diz, a relação de criação segue o substrato substancial, como é o caso de todos os acidentes; mas quanto ao conceito que é: dependência, ela a precede de alguma forma (veja, constate o embaraço) assim como a ação criativa, causa próxima deste acidente. »
Uma vez que o próprio Santo Tomás nos autoriza a fazê-lo, insurgimo-nos. Para Aristóteles, o pagão, é evidente que as substâncias existem necessariamente em si mesmas, sem causa e sem relação com nada mais que elas. Todas as suas determinações secundárias são acidentais, e todas as suas relações com o resto do mundo (e com Deus!) são acidentes, quatro vezes nada, insignificantes.
A RELAÇÃO NÃO É NADA?
No De ente et essentia, no capítulo VIII que guardamos para agora, Santo Tomás tem a fraqueza de seguir Aristóteles, como se nada tivesse inovado nos capítulos precedentes. Ele está a seguir Aristóteles! Em primeiro lugar, há as substâncias, repito, que se dão a si próprias a existência pela reunião da sua matéria e da sua forma. Texto (p. 75)! A « este ser completo por si mesmo, que subsiste na sua existência que, na verdade, precede de anterioridade o acidente ocorrido », este não acrescenta nada, a não ser « uma certa existência segunda », quoddam esse secundum, « sem a qual se pode conceber a coisa remanescente, assim como um primeiro (note-se bem!), um primeiro pode ser concebido sem o segundo ».
Assim, estes infelizes acidentes são de uma espécie de ser miserável, « ens secundum quid », de essência miserável, « et ita essentiam secundum quid ». A causa é a substância, os nobres em virtude da sua forma, os vils em virtude da sua matéria, por exemplo: « a cor da pele dos etíopes; por isso, depois da morte, subsiste esta cor »!
E finalmente, no fim, tudo no fim, a relação é examinada, tratada, expedida em três linhas: a relação é um acidente do acidente, sim, um nada de quase nada. Porque « Aristóteles divide a relação num triplo ponto de vista... consoante tenha por princípio ou fundamento um dos três seguintes acidentes: a ação, a paixão e a quantidade, todos os três princípios de relação » (81). É isso? É isso. É revoltante.
Conscienciosamente, por fidelidade à sua opção aristotélica (por vezes enfureco, e digo: covarde!), Santo Tomás, portanto, coloca a substância ou natureza absoluta, logicamente, primeira no seu espírito... e no ser. Em seguida, examina os seus acidentes marcantes: ela apareceu, cresceu, deu à luz, trabalhou, envelheceu, morreu. Ela chegou a pesar 50 kg, mede 1,60 m, viveu em Paris... ações, paixões, quantidades. (...) Portanto, há sempre a substância, o Indivíduo, e depois o pormenor das suas relações através das quais os outros seres – e Deus – lhe estão de qualquer modo, um pouco, mas muito acessoriamente, acidentalmente, presentes! Consulte as Categorias de Aristóteles, é isso mesmo. (...)
A paternidade e a filiação são bons exemplos de relações acidentais! « Assim o pai é dito pai de seu filho, porque no passado um fez, e o outro sofreu a ação de algum modo. » (Meta, Δ 15, 1021 a, 24) Este « de certa forma », para evocar o modo como um filho « sofreu » a sua geração pelo seu pai, é estranho. Como podia ele sofrer o dom da vida, quando ainda não era! Como se este acontecimento fosse tão acidental para a criança, que recebeu a sua existência, como para o seu pai, que talvez nunca se tenha preocupado!
Nós percebemos aqui mesmo o erro monumental da filosofia pagã de Aristóteles. (…)
COMO ESTERILIZAMOS O TOMISMO
Santo Tomás tinha respeitado a substância aristotélica, a essência absoluta, matriz universal. No entanto, tinha-lhe acrescentado a existência como seu complemento necessário, elemento metafísico distinto, vindo de outro lugar, portanto de Deus. Por que não ousou, não chegou ao ponto de dizer que esta ação de Deus criador era absolutamente primeira? (...) A sua prudência deteve-se em dizer que, à substância de Aristóteles, tal como está, era necessário que sobreviesse a existência para ser realmente, e que esta existência lhe proviesse de Deus. Mas a substância nessa consideração, de onde veio? Se a sua existência lhe sobrevinha de uma relação com Deus que só lhe era acidental e, entre os outros acidentes, da última categoria, que nem sequer é real, a substância continuava a ser um ídolo pagão! (...) Ele bem sabia que Deus faz juntos, e um para o outro, estes dois princípios do ser, e que este divino agrupamento criado do nada, ex nihilo, todo o ser real concreto, essência e existência, substância e acidentes, todos os elementos, pontos de vista e ideias que não passam de recortes e recomposições posteriores do nosso espírito.
Contudo, ele não chegou ao ponto de dizer, tão claramente que os seus discípulos não podem errar nem jamais o contestar, que a diferença capital entre Deus e os seres do universo, é que Deus é Substância e depois cria, como um homem é homem e depois pai, se quiser, procriando.
Enquanto os outros seres são criaturas, primeiro e necessariamente, e totalmente relativos a Ele, dependentes d'Ele e, por isso, das essências e das individualidades, tais gêneros, espécies, diferenças e peculiaridades que todos eles têm sobre Ele, como um filho é filho antes de ser de tal natureza, sexo, raça, tamanho e cor do cabelo, tudo explicável justamente por sua origem. (...)
Em vez de realçar as riquezas do seu novo existencialismo, esta súbita explicação metafísica de todos os cantos e recantos do ser pela criação divina, o próprio Santo Tomás, e no decorrer dos séculos a inumerável coorte dos seus discípulos, fecharão indefinidamente o seu achado nos limites do substancialismo de Aristóteles. Sempre a substância, o ser universal abstrato! E através dela, além, ofuscadas, as pessoas, as individualidades, as coisas concretas! (...) « Relativum: habet ens debilissimum » (de Ver., quest. 27, art. 4, c. 5), o relativo? É o ser mais estúpido. Inexistente, o quê?!
Então, em vez de abrir a metafísica ao concreto, a novidade do par essência-existência leva a inventar de uma para outra um jogo sábio de relações mútuas. Como uma se adapta, se adequa, se casa com a outra. E chamar-se-á a isto « relações transcendentais », crente em aprofundar o mistério do ser quando se esgota em vãos discursos. (...) Devo dizer, para honra de Santo Tomás, que sempre recusou estes divertimentos dialéticos. (...)
Por que estas invenções? Porque estamos à procura de um tesouro onde ele não está, porque não o procuramos e descobrimos onde ele está. Visto que não se quer que a relação de origem, a relação pré-existente com Deus revele todo o tesouro da existência, todo o segredo dos seres concretos, na magnífica unidade do gesto criador, se perscrutem em vãs relações puramente lógicas, e que não podem conter nada mais do que o que foi posto lá, as relações de cabeça para baixo no lugar de uma peça, as relações da essência à existência... e vice-versa! Há um aristotelismo decadente e um tomismo estéril que foram apanhados no jogo de uma dialética enganosa. (...)
À força de dizer que a forma é princípio e causa do ser, desde que uma matéria a determine; que a potência é princípio do ato, e que a essência completa é aquilo por que as coisas existem, pode-se pensar que é a fechadura que faz a chave, e a chave a fechadura. Acabaríamos por esquecer, nesta embriaguez dialética, que é o serralheiro que as faz uma e outra, ao mesmo tempo que uma para a outra.
O EXISTENCIALISMO DESACREDITADO
Então, depois do esplendor maravilhoso da descoberta do ato de ser por Santo Tomás, pouco e pouco esta luz escureceu. Esta intuição da Existência, que abria magnificamente o nosso conhecimento natural sobre a relação de origem, como filial, da criatura a Deus, perdeu o seu poder de renovação indefinida da meditação metafísica e religiosa. Esquecemo-nos da relação com Deus, esgotamo-nos a analisar a noção de existência e, evidentemente, não lemos nada, não aprendemos nada. Como se a afirmação da existência real de uma coisa pudesse adicionar ao nosso conhecimento algo de sua natureza e de suas várias maneiras de ser!
O que estava para acontecer, aconteceu. Os opositores chamaram a atenção para a inutilidade de tal verborreia. O existencialismo era em vão; não acrescentava nada à nossa ciência, fazia apenas o papel de ornamentar com uma retórica inútil! Mais valia esquecer esta pretensa distinção entre a essência e a existência e voltar a um aristotelismo, a um cientificismo estrito.
A RELAÇÃO DE CRIAÇÃO, CHAVE PARA A METAFÍSICA TOTAL
Do pagão, do filósofo de gênio que foi Aristóteles, aceitamos toda a FÍSICA, conhecimento sistemático da natureza das coisas, das essências universais a partir das quais o espírito conhece as estruturas dos seres, as suas leis, as suas relações. (...)
Do cristão, do teólogo genial que foi Santo Tomás de Aquino, nós aceitamos toda a METAFÍSICA, conhecimento sistemático dos seres, apreendidos no próprio ato da sua existência, na sua relação com Deus original e constituinte. Mas recusamo-nos a fechar-nos no « existencialismo » de Santo Tomás como no « substancialismo » de Aristóteles, ambos destinados a abrir-se a Deus.
Porque a substância está toda na ordem da maneira de ser, mas só por si não é nada na ordem de ser. Do mesmo modo, a existência é tudo na realidade do ser concreto, mas só por si, em vão, ela não aprende nada que a essência não diga melhor do que ela. A sua verdadeira lição é evocar o Ser puro como a sua fonte, a sua razão e o seu fim.
É a relação de origem que é tudo, que diz tudo, que envolve a essência e a existência, o universal e o particular, o abstrato e o concreto. É ela que nos revelará, pela sua simples luz natural, o mistério dos seres criados para o qual tendiam sem alcançar o substancialismo dos físicos e o existencialismo dos filósofos. Esta relação, que vem de Deus e toca o mais íntimo das suas criaturas, é uma maravilha maior do que qualquer essência, do que qualquer existência. Mas o que é então e o que diz? Vê-lo-emos.
Abbé Georges de Nantes
Extratos da CRC n° 173, Janeiro de 1982, p. 3-12