O abbé Louis Vimal

« ESTOU TRISTE DE MORRER POR TER PERDIDO O MEU PAI.
Porém, morto ele ainda fala. Como se visse o Invisível, ele se manteve firme. »

NO dia da sua morte, o anonimato foi levantado daquele que o Abbé de Nantes chamava nas suas Memórias e Histórias: “O incomparável amigo”.

É no Seminário de Issy-les-Moulineaux que Deus se delegou em reunir estes dois seres excepcionais, dando entre si uma singular amizade sacerdotal de extrema beleza, verdade e fecundidade.

O nosso Pai afeiçoou-se a ele desde os primeiros dias do seu seminário, “como o jovem Tobias ao arcanjo Rafael, como o discípulo a um mestre incomparável” enquanto o Abbé Vimal cumpre maravilhosamente este ministério providencial.

Esses poucos trechos das Memórias e Histórias nos farão apreciar este mistério da caridade circum-incessante:

O INCOMPARÁVEL AMIGO

O Abbé Louis Vimal, jovem sacerdote

Eu tinha encontrado, desde o primeiro dia, meu Mestre. Eu sempre tive sorte na vida, é verdade. Mas essa sorte foi entre as maiores, sem dúvida a maior, uma vez que o amei, por que graça? Por que inclinação do coração? Por que instinto divino? Imediatamente, apaixonadamente o conhecimento e a maneira de saber, de tal modo que, carregado por ela, ele se imprimiu no meu espírito, despertando-o para esta vida superior onde as palavras são verdades, e as verdades revelam o seu mistério, onde eu caminhei, então, passo a passo de gigante, como numa recriação contínua, cheia de amor. (…)

Era, de todos os nossos diretores, o mais admirado, o mais querido, mesmo fugindo de nossa companhia e decepcionando expressamente nossos entusiasmos. No entanto, pude ver que ele sempre manteve o seu ar incomodado em todas as minhas visitas e estava ansioso por acabar com ele! Que me recebia com grande satisfação. Não por causa da minha pessoa, ou seja, da minha nulidade, mas porque, assim que entrei, para prevenir sua ira, me apressei a dar-lhe matéria para me ensinar, para me denegrir, para me desidiotizar. Assim, de uma questão para a outra, havia sempre mais a pedir, a dizer, a aprender, e de uma visita à outra desenvolvia-se forçosamente uma sólida amizade intelectual que não se confessava ser também de coração, que necessidade tinha?

Este hábito de falar de omni re scibili et quibusdam aliis conheceu a sua grande viragem quando regressei da província, em outubro de 1944, numa Paris e num seminário barulhento dos furores e dos gritos da dita libertação. Ainda não sabia nada sobre as suas ideias políticas, pessoais, sobre as quais ele se afastava. (...) Só uma vez, eu tinha criticado friamente de maneira dirigida contra o “ paganismo ” de Charles Maurras e contra a sua maneira “odiosa” de separar a Igreja Católica do seu fundador, cujo “cristianismo” não excitava nele senão sarcasmos e blasfémias. (...) Para derrotar a si mesmo e a mim! Ele insistia, citando textos avassaladores, não me poupando palavras ofensivas, nenhum desenvolvimento exasperante, ao mesmo tempo que se certificava por alguns olhares breves da minha submissão, me impondo silêncio. Depois queixei-me e ousei contestar. Em um tom seco, ele me parou: “Mas sim, de Nantes! É assim...” E não se fala mais sobre isso.

Nessa manhã, a barragem cedeu. Foi sem hesitação que ele deixou aparecer, acompanhados por um som que ele costumava fazer, a sua fúria, a sua indignação, o seu repúdio a esta revolução bolchevique com capa democrata-cristã e gaulista, que tinha corrido toda a França à medida que os exércitos alemães saíam, e todo aquela “confusão” disse ele, que tinha mesmo passado os muros do Seminário. (...) “É você que tinha razão, de Nantes! E é Maurras,as palavras tão prontamente pronunciadas foram-se inscrevendo em letras de ouro no céu da minha memória, com imensa alegria, sem sequer ousar olhar para elas... Esse incomparável amigo me dizia como a súbita luz desses fogos do inferno acesos por toda parte o trazia de volta ao que tinha sido forçado a negar no momento da condenação da Ação Francesa, em 1928, para aderir ao sacerdócio: as suas convicções evidentemente monárquicas, a sua fidelidade ao pai, ele próprio companheiro e amigo de Charles Maurras, da primeira geração de estudantes de Açâo Francesa, em torno de Maxime Real del Sarte! O que eu era, o que eu pensava, o que eu herdava, lembrava-o de como ele era na sua juventude, e sem dúvida isso explicava isto, o cuidado que tinha com o meu pequeno eu, assim que me conheceu, temendo que tropece em algum obstáculo e perca a minha vocação. (...)

Desde então, as nossas relações mudaram, e isso foi providencial. Não vou contar aqui uma segunda vez a agitação que se seguiu à libertação até aos nossos seminários. De qualquer forma, em cada vitória da desordem, na véspera de algum escândalo, uma opinião discreta de ter de desconfiar, de calar-me! Salvaram-me de um drama, de uma revolta instintiva que me teria levado à punição de uma expulsão imediata. Havia assim alguém, a quem podia ir gritar a minha repulsa nojo, o meu ódio por certas coisas, por certas mentiras, e eu ia bater à porta, com o coração palpitante, nos momentos mais inesperados, iludindo toda a vigilância. Quando eu exalava a minha fúria, ele tinha a palavra e a última palavra. Partia, se não apaziguado, pelo menos convencido da inutilidade fundiária de qualquer oposição declarada; pelo contrário, convencido da vitória oculta sobre a revoltante revolução, de uma força de alma muda que, no entanto, lhe resiste sem falha... (...)

Eu não vou recapitular tudo que lhe devo... Mas, finalmente, desde o primeiro trimestre de 1943, quando o Mons. Ruff nos ensinou a teoria do conhecimento segundo Santo Tomás, esta construção aparentemente gratuita e estranha para os grosseiros que éramos, foi ele que me recomendou que a estudasse bem, sem desprezar nada disso. Este “realismo atenuado”, esta sabedoria fundamental, eixo de toda a ciência, devo-lhe isso! Quando, tendo-lhe feito uma dissertação infantil, de um sentimentalismo de que ele se riu tanto, fui obrigado a aceitar a constatação da minha ignorância e a decidir trabalhar, para substituir as minhas “sínteses subjetivas” pela ciência certa da verdade das coisas. Quando me apercebi de uma profunda dúvida sobre a exegese do Padre Gazelles, no qual só via modernismo, foi ele que me proibiu de ler Loisy, que deixou amadurecer a minha reflexão ansiosa e, por fim, enviou-me para pedir explicações ao mesmo, quando já a simples visão da sua própria fé, ponto confiante e desafiador sobre as ciências bíblicas modernas, tinha acalmado minhas angústias. Quando a apologética do Mons. Enne me pareceu pedir muito emprestado do método de imanência de Maurice Blondel, foi ele ainda que me deu razão, mas dissuadindo-me de me apaixonar sobre este pormenor, por respeito ao nosso mestre e superior comum. Mas foi ele que me fez conhecer e estudar a fundo um excelente e não encontrado livro de Jean Guitton, sim, de Guitton do tempo que era bom, precisamente sobre o criticismo kantiano que se encontra na fonte envenenada de todas as obras modernistas; esqueci o título, mas o conteúdo permaneceu em mim. Eram tantas as profilaxias salutares, que me eram indicadas, fornecidas nesta alegre amizade, enquanto os meus irmãos permaneciam hesitantes entre trinta e seis caminhos que lhes estavam abertos num liberalismo confuso. As suas escolhas deviam-se ao capricho, à impressão do momento, à opinião do último que chegasse. As minhas eram boas, de repente. Sem o meu mérito. Realizava-se a palavra do Evangelho: « A quem não tem é tirado o pouco que lhe resta; a quem tem muito se dará! »

O importante era que eu não imaginava que um dia seria capaz de ver o verdadeiro e o bem por mim mesmo. Como poderia ter pensado nisso, quando não parava de receber de outro, dele, tudo o que fazia o meu tesouro? Como meu querido pai, tinha um mestre para pensar, e tinha-o deixado antes de ter alcançado os limites do seu conhecimento. E, tomando o lugar, este incomparável amigo não parava de responder a todos os meus pedidos, de os avisar até de suas advertências... Ele carregava para mim os braços de livros, os melhores, e o seu sublinhado a lápis vermelho e azul – desenhado com a régua, com aquela clareza que ele punha em tudo – ajudaram-me a somar aos conselhos dados no início ... De ano a ano, não encontrei os limites do seu saber, enquanto ele me fazia ver fortemente os meus, para se divertir um pouco de mim, avivar o sentimento da minha ignorância e atiçar a minha curiosidade. (...)

Eu tinha, graças a tantos exercícios práticos, adquirido certo domínio do sistema de pensamento para o qual fui chamado a servir à Igreja. Era um método rigoroso, que não suportava a menor aproximação, aplicado aos dados positivos mais elevados, os mais vivos, os únicos adoráveis, imensos, vertiginosos: o gesto divino em ação na história dos homens, a revelação do Mistério de Deus em todas as suas fidelidades e misericórdias. E é isso que agora eu ia trabalhar por três anos até o sacerdócio, se Deus quisesse, e por toda minha vida? Eu estava transbordando de alegria. Mas, desde as primeiras aulas, atingido por essas belezas e diante de suas dificuldades, eu ia ter que questionar mais a meu mestre. (…)

Tal como Sócrates, era imprevisível nas suas réplicas. Original era o que se dizia, mas não era no seu modo de viver, de se vestir, de se comportar... Ele tinha total liberdade para julgar coisas e pessoas. Se alguém me pareceu liberal e respeitoso com os outros, os seus superiores, os seus colegas, os seus alunos, sem no entanto faltar à verdade, era ele. Nos nossos relatórios de meio século, por mais que ele me transmitisse as suas convicções e opiniões bem firmes, sem se preocupar em escandalizar-me ou edificar-me, também não se preocupava minimamente com o que eu gostaria de admitir ou recusar. (...)

Mas eu poderia aumentar desmesuradamente a lista dos seus títulos ao meu reconhecimento, a essência profunda, a realidade invisível do que descobri então para os próximos 50 anos não estaria encerrada ali, quero dizer a extrema beleza, verdade e fecundidade de uma amizade sacerdotal. É para as pessoas do mundo, sem dúvida, um mistério ainda muito raro, não dito, passando despercebido, senão nas vidas de santos. (...)

Vou dizer uma loucura! Um pensamento inacreditável, que, no entanto, poderia formular numa máxima bem conhecida, demasiado conhecida, perfeitamente aceite a ponto de se ter tornado insignificante: Sacerdos, alter Christus, o sacerdote é outro Cristo! (...)

E esta Verdade que é Jesus Cristo, “difundida e comunicada”, como Bossuet diz da Igreja, é que me amou, alimentou, carregou, completou por mil e mil graças neste amigo, neste sacerdote, e como eu O amei nele, ah! Jamais ousaria escrevê-lo de outra pessoa, com um certo amor que sempre vence.

Mas tal confissão é absolutamente ridícula. Porque é verdade.

Georges de Nantes.

 

CARTA DO ABBÉ VIMAL

A prudência e a sabedoria deste homem de Igreja nunca deixarão de acompanhar o teólogo da Contrarreforma Católica, como testemunha esta comovedora carta do Mestre provado, sofrendo os sofrimentos da Igreja, e tornando-se na lógica do seu serviço o conselheiro, o discípulo distante, mas fiel do nosso Pai.

Bayeux - Seminário maior, 22 de janeiro de 1970

Caríssimo,

(...) O Seminário de Bayeux vive as suas últimas horas, em Outubro será transferido para Caen sob a forma de Centro de Estudos Religiosos, os seminaristas seguirão os cursos da Universidade! viverão em comunidades pastorais de " Setores " (uma vez que já não se trata de paróquias - penso em Péguy, "E eu, diz Deus, o que seria sem as minhas velhas paróquias francesas? O que seria de mim?É aqui que o meu nome surge eternamente ... ”) Em resumo! Será a formação no trabalho; de teologia propriamente dito, isso não está mais em questão.

O que me entristece e me afasta é que há uma minoria de seminaristas válidos que repugnam esta aventura e gostariam de continuar como antes, mas é a maioria progressista que através de manobras hábeis – sempre os grupos de pressão – impõe as suas opiniões. E meus colegas se precipitam no caminho da mudança, sem perceber que é a fábula do cachorro que larga a presa nas sombras..

Vós compreendeis bem que, em tais conjunturas (doença e esforços – aliás inúteis – para conter a revolução) não tenho a mente livre o suficiente para vos escrever. E, no entanto, penso em vós continuamente e rezo muitas vezes por vós. Mas como é que, dada a minha timidez natural e a desconfiança que tenho em mim mesmo, posso dizer-lhe as palavras certas? O que predissestes e anunciastes desde há quinze anos é confirmado – e ampliado: a autodestruição da Igreja é cem vezes superior àquela que temíamos e que vós denunciastes. A velocidade de aceleração é inaudita, como na de qualquer decomposição.

Então, como posso não vos dar razão? De tal forma que há momentos em que me pergunto se o meu dever não é juntar-me à vossa comunidade. Mas, é esta pusilanimidade, é este medo de comprometer-me, é a impressão de que eu seria demais e inútil entre vós, não me detenho nesta ideia: não se entra "na religião" aos cinquenta e seis anos. No entanto, quero dizer-vos que estou persuadido de que estais a travar a boa luta e que a Igreja e tantos fiéis na França, que sofrem perseguições pela justiça, precisam de vós e precisarão cada vez mais.

Como sabem, opus-me a uma diligência em Roma, isto por oportunidade; depois disso, penso que tiveram razão. O resultado só poderia ser a notificação, que não é uma resposta às vossas instâncias, mas uma mera sanção: pelo menos as coisas estão claras, não queríamos para decidir sobre a substância do problema porque não podíamos, e talvez fosse necessário forçar o Magistério a evitar essa evasão. Que muitos vejam que a evasão ocorreu, sem qualquer justificativa para se posicionar contra vós. Mas para isso é necessário ter tudo, desde o início; e a autoridade de Roma ainda é tão viva entre os melhores dos fiéis... A notificação não diminuiu o número de seus leitores? Infelizmente, eu temo isso.

Quando, por uma lógica implacável, se relaciona com o primeiro responsável, como é que eu posso estar errado? Pessoalmente, por temperamento e por oportunidade, não teria feito essa pergunta embaraçosa; mas já que o fiz, só posso vos aconselhar a não insistir demasiado.

Eis... tudo isto é rápido, pelo menos sabereis – se alguma vez tivestes dúvidas – que estou em PLENA COMUNHÃO convosco: continuais vós a iluminar-me e a ajudar-me diante de muitas perguntas, mesmo que não estou dizendo a vós o tempo todo. A ausência e o silêncio não nos desiludem: estou apenas às voltas com tantas dificuldades que, por preguiça, evito efetivamente partilhar as preocupações dos outros, sejam eles os meus melhores amigos.

Sobretudo esforçar-me-ei cada vez mais para pensar em vós diante do Senhor. Oh! Que é preciso rezar pela Igreja!

Com todo o meu carinho,

ABBÉ LOUIS VIMAL

 

« Meu querido Pai, esta PLENA COMUNHÃO convosco permanecerá sempre. »

Irmão George de Jesus-Maria. Neste 20 de outubro de 1998

Extratos da CRC n° 285, p. 31-35, CRC n° 350, p. 35-36